Múltiplas hipóteses

Um passo básico na realização de uma pesquisa consiste na escolha das chamadas hipóteses. Hipótese pode ser definida como uma ideia proposta para explicar um determinado fenômeno, que pode ser ou não corroborada pelas evidências. Longe de ser um procedimento trivial, a escolha de uma hipótese tem suas sutilezas, cujas implicações podem comprometer ou enviesar os resultados da pesquisa de forma irrecuperável. Os problemas envolvidos na escolha de hipóteses são ainda mais acentuados no caso das ciências humanas, em que o objeto de investigação corresponde a ações individuais e coletivas, instituições e estruturas, de natureza distinta de fenômenos físicos e naturais. Um dos maiores riscos é que a escolha prévia de uma ou outra hipótese preferencial acabe por influenciar ou mesmo moldar os resultados do que está sendo investigado.

Às vezes, as hipóteses são derivadas diretamente de uma teoria geral que fornece as variáveis e as relações causais que vão circunscrever os resultados da análise realizada. Nesse caso, outras variáveis (ou fatores) e relações são excluídas(os) da investigação e a explicação proposta, quando o estudo é de natureza aplicada, resume-se a testar a significância da hipótese escolhida à luz dos dados coletados. Embora seja um exercício válido no âmbito da teoria adotada, o problema é que nada garante que as variáveis e relações selecionadas sejam realmente as mais relevantes para explicar um determinado fenômeno, de maneira que a explicação (hipótese) oferecida pode estar comprometida na sua origem. Em tese, explicações concorrentes, baseadas em distintas teorias, deveriam ser confrontadas e corroboradas ou não pelas evidências. Contudo, como as próprias evidências utilizadas dependem do que é considerado relevante pelas teorias, sendo validadas internamente a cada uma delas, é comum que as explicações convivam em mundos paralelos, sem comunicação regular ou produtiva entre seus defensores. A predominância de uma teoria sobre outras ou o espaço ocupado por cada uma, nesse caso, vai depender em grande medida de fatores institucionais, inclusive da influência de centros de pesquisa e universidades na formação de novos pesquisadores que irão reproduzir teorias, métodos e explicações mais ou menos em voga.

Nas áreas em que a pesquisa mais se assemelha à montagem de um quebra-cabeças (faltando a maioria das peças), como no estudo da evolução das espécies e da história, o papel das ideias preconcebidas (ou teorias) na formulação das hipóteses tende a ser ainda mais marcante, podendo tornar-se um fator que acabe por obscurecer o entendimento da realidade, diante da força que as convenções exercem na escolha das evidências e na busca de confirmação das hipóteses. Nesses casos, é frequente – apesar de indesejável e danoso – que as hipóteses tornem-se praticamente impermeáveis à refutação em vista da seletividade na coleta de evidências. O paradoxo é que essa consequência é exatamente oposta ao que se deseja alcançar com a adoção de um método que se pretende científico.

Em um plano menos geral e mais próximo ao dia a dia da pesquisa empírica e histórica, é também comum a situação em que a hipótese faça parte de um modelo elaborado para explicar um fenômeno específico, a partir de evidências coletadas sobre um determinado aspecto da realidade. Aqui, o compromisso com uma teoria geral pode ser relaxado ou até mesmo abandonado, passando o objetivo primário a ser mais a explicação do fenômeno em si do que a corroboração ou não de uma teoria preferida. Apesar de mais flexível, essa abordagem não elimina os problemas apontados anteriormente com a escolha de hipóteses. Assim como na adoção de teorias gerais que derivam explicações de acordo com suas premissas, a escolha de hipóteses que se baseiam em um conjunto de evidências coletadas para entender um problema específico pode igualmente ser distorcida pelas preferências do pesquisador e excluir explicações mais plausíveis e consistentes com os dados.

É nesse caso que um método alternativo na seleção de hipóteses pode ser mais proveitoso e recomendável para a pesquisa. A estratégia consiste na escolha deliberada de múltiplas hipóteses que dêem explicações plausíveis, distintas e concorrentes para um mesmo fenômeno. Esse é o tema de uma matéria recente na Nature, com o título “Research protocols: A forest of hypotheses“. Na verdade, o método faz parte de um acervo antigo de práticas de pesquisa em diferentes áreas, mas que nem sempre tem sido explicitamente formulado e reconhecido enquanto procedimento válido e recomendável. Apesar do artigo da Nature tratar dos protocolos de pesquisa nas ciências naturais, as questões também são comuns à história econômica e outras disciplinas das humanas.

Em vez de apegar-se a uma explicação única, que corre o risco de tornar-se uma busca dissimulada de confirmação, a estratégia das múltiplas hipóteses admite a tendência de vieses estarem presentes na análise do pesquisador e tenta controlá-los pela formulação consciente de explicações alternativas do problema estudado. A presunção é que o confronto dessas hipóteses distintas com as evidências consiste em um guia mais fiel para julgar a plausibilidade e consistência de possíveis explicações de um fenômeno, forçando o pesquisador a questionar suas convicções prévias e avaliar o problema de forma mais distanciada. Esse procedimento também pode ajudar a abrir novas frentes para a busca de evidências que tendem a ser excluídas caso se opte previamente por uma causa única.

Seria ingênuo imaginar que a formulação de múltiplas hipóteses tenha a capacidade de eliminar, por si só, os problemas típicos de uma pesquisa que foram notados anteriormente. Por exemplo, a estratégia requer um grau de distanciamento do pesquisador em relação a todas as hipóteses escolhidas que pode ser difícil de ser obtido na prática. Não bastaria adicionar explicações ao lado da preferida para depois descartá-las ou desmoralizá-las. Da mesma forma, nada garante que as múltiplas hipóteses selecionadas incluam as que de fato sejam as mais relevantes para explicar um certo fenômeno. Pensar o contrário seria imaginar que o pesquisador pudesse ser onisciente. Mas pelo menos o hábito de reconhecer as possíveis distorções do julgamento individual, trabalhar com hipóteses concorrentes e tentar contrastá-las de forma equilibrada com os dados oferece uma base mais honesta e profícua para a condução de pesquisas, inclusive as de natureza histórica.

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