Após o resgate dos beagles em São Roque em 18/10, vários profissionais vinculados a órgãos do governo, instituições de pesquisa, entidades científicas e empresas têm saído a campo para condenar veementemente a ação dos ativistas e a defesa dos direitos dos animais utilizados em laboratórios. Os termos vão de “fora da lei”, “crime”, “atos violentos”, “desinformação irresponsável” a “terroristas”, entre outros ainda piores.
É até compreensível que os envolvidos diretamente nos testes com animais e seus simpatizantes de outras áreas (de matemáticos a jornalistas) ajam desta maneira, por seus vários interesses e crenças envolvidos. Porém, a quase histeria na reação de alguns profissionais não elimina o fato de que uma atividade que envolve a transferência de enormes recursos públicos, questões éticas sérias e resultados que são avaliados sob critérios comuns a outras áreas (estatísticos, econômicos, jurídicos e inclusive morais), deve ser examinada, discutida e eventualmente criticada pelos distintos setores da sociedade, dentro e fora da universidade e dos laboratórios.
Vários desses profissionais não têm escondido uma pouco sutil e perigosa presunção de que a avaliação de suas práticas deve ficar restrita à sua própria comunidade fechada, que circula entre as paredes de laboratórios e nos corredores de empresas privadas, órgãos governamentais e de financiamento público. Não vou relembrar o quanto na história esse tipo de raciocínio entre membros da comunidade científica levou a ações com consequências sociais drásticas (mas se for preciso, podemos tratar do assunto posteriormente). Meu objetivo aqui é outro.
Desde o dia 18/10, diversas pessoas têm observado que muitos textos e declarações têm sacrificado a objetividade, a transparência e a imparcialidade que seriam de esperar de uma comunidade científica. A retórica adotada por vários profissionais (com poucas exceções) tem omitido e distorcido fatos de uma forma reiterada, deliberadamente ou não. Neste e nos posts seguintes, trato dessa retórica e dos argumentos que têm sido apresentados por esses profissionais, tentando contrastá-los com informações e – quando possível – dados encontrados tanto no Brasil quanto no exterior. Infelizmente, há pouquíssimas estatísticas e informações oficiais relacionadas aos experimentos com animais no Brasil, apesar de sua ampla utilização, da importância vital atribuída a eles pelos seus defensores e do volume de recursos públicos envolvidos. Mesmo assim, dada a relevância do assunto, creio que a tentativa vale a pena.
I – A ciência e a anticiência
Um dos casos que mais chamam a atenção é a tentativa de atribuir aos que denunciam os testes com animais uma atitude “contrária à ciência”. Fiz uma busca em vários textos dos defensores da causa dos animais e não encontrei oposição à pesquisa científica, à tecnologia ou ao desenvolvimento tecnológico, muito menos ao “desenvolvimento nacional”. Pelo contrário, em vários lugares defende-se a reorientação dos testes para uma combinação de técnicas in vitro, uso de tecidos, modelos computacionais, microestudos com humanos, estudos populacionais, etc., ou seja, métodos alternativos e sofisticados que vêm sendo discutidos e implementados em vários lugares do mundo. Ao contrário do que dizem os críticos, as pessoas estão bem informadas, mesmo não sendo especialistas em testes com animais. De certo modo, é até irônico ver a acusação de que os defensores da causa animal pregam o “obscurantismo” e que são opostos à ciência e à tecnologia, pois o principal recurso deles na organização e obtenção de informações tem sido exatamente a moderna tecnologia de informação.
O propósito de acusar alguém de ser “contrário à ciência” parece ser o de tentar convencer o público de que os testes com animais são o critério determinante para a definição de “ciência experimental” e “ciência”. O argumento, porém, não é consistente. Caso contrário se um pesquisador ou laboratório se dedicasse apenas a aperfeiçoar e realizar pesquisas e testes com “modelos não animais” – como de fato acontece – seria também classificado como “anticientífico” e “oposto à ciência”, o que seria um despropósito. Por essa lógica, grupos de pesquisadores que estão hoje conduzindo pesquisas sobre asma, septicemia, câncer, Alzheimer, Parkinson e HIV, por exemplo, sem o uso de animais e com métodos experimentais sofisticados, teriam de ser classificados como “obscuros” e “contrários à ciência”.
Um outro argumento parecido é o de tentar fazer crer que a comunidade científica é unânime em relação aos testes com animais e que, portanto, a contenda se divida entre cientistas x não cientistas, sendo os primeiros detentores de conhecimento objetivo e neutro, enquanto o restante seria formado por leigos que deveriam acreditar nos cientistas. Acontece que há cientistas da área de biomédicas e medicina que rejeitam a adequação de testes com animais como base para a pesquisa médica. Esses cientistas são tão cientistas quanto os que defendem os testes com animais como relevantes e necessários. Entre os cientistas céticos quanto aos resultados da utilização dos animais, há tanto os que já realizaram experimentos com animais, quanto outros que trabalham com métodos alternativos. Contudo, em todos os artigos e declarações recentes que consultei dos profissionais da comunidade que estamos analisando, não encontrei um sequer que mencionasse a existência de concepções divergentes sobre o uso de testes com animais e que não há consenso a respeito entre os pesquisadores da área. Seria então de esperar que pelo menos as entidades científicas gerais, que deveriam preservar algum equilíbrio e independência, informassem o público sobre essa ausência de unanimidade, mesmo que preferissem ficar ao lado dos praticantes dos experimentos tradicionais. Mas isso também não ocorreu.
[Continua]
Veja a Parte 2 aqui.