Carta aberta à SBPC

Enviada para: Jornal da Ciência, Diretoria da SBPC e Conselheiros.

Prezados(as) Srs(as),

Lamentáveis os argumentos e as intenções subliminares contidos no texto “A comunidade científica brasileira esclarece” divulgado à imprensa e no site do Jornal da Ciência da SBPC em 18/10/2013.

O texto é uma defesa intempestiva, irrefletida e parcial de uma entidade (o Instituto Royal) que está sendo questionada publicamente por suas práticas e procedimentos. Estranhamente para um “esclarecimento” que se intitula da “comunidade científica”, o texto ignora evidências de maus tratos e crueldade que foram registradas nos recintos da entidade e nos animais resgatados, evidências que estão circulando na imprensa e na mídia social. Autodenominados “cientistas” que rejeitam evidências de antemão, para defender uma entidade sob acusação de má conduta citando normas e órgãos burocráticos, levantam a suspeita de incapacidade de defender legitima e publicamente seus argumentos.

Lamentável a arrogância expressa no texto, por exemplo quando afirma que a invasão “revela o desconhecimento por parte de quem praticou tais atos sobre a importância da utilização de animais para o desenvolvimento de novos medicamentos [somente?] e tratamentos para o ser humano.” Por que “desconhecimento”? Presumir que somente “cientistas” (que curiosamente rejeitam evidências a priori) possuem o “conhecimento” das implicações do uso de animais em testes, laboratórios, cursos, etc., é um recurso de retórica primário e propositalmente enganador, pois sabem muito bem eles ou elas que redigiram o texto que os limites de atividades com humanos ou animais estão sujeitos a normas éticas, subjetivas e definidas socialmente, que vão muito além dos interesses específicos de um grupo de “cientistas” ou de instituições e empresas a que servem. Não é por outro motivo que todas essas questões têm sido há tempos debatidas internacionalmente, e não só pelos que se consideram os únicos capazes, habilitados e imediatamente interessados.  Se é assim, todos – não só autodefinidos “cientistas” – podem e devem opinar e se manifestar quanto a esses limites, normas e definições. Ou o ato de discordar de normas técnicas estabelecidas por órgãos burocráticos (supondo que o Instituto Royal seja perfeito na observância de tais regras, e que tais regras sejam o supra-sumo da benignidade, como sustenta passionalmente o texto) é, por dedução, “desconhecimento”? Ou, ainda, quer alguém convencer-nos de que está acima das opiniões de uma sociedade no que diz respeito a normas e regras de suas atividades enquanto “cientistas”, como um Mengele da atualidade?

Seria de esperar que um texto que diz representar uma comunidade científica – mesmo sendo tão ostensivamente dócil com a entidade acusada e, ao mesmo tempo, tão hostil com os ativistas da causa e os animais submetidos a testes – apresentasse uma descrição integral das atividades da entidade que está defendendo, não apenas destacando as alegadas observância estrita de normas burocráticas e excelência científica. Tão relevantes quanto esses aspectos frisados no texto são as condições de operação e a natureza da própria entidade: quais são os recursos privados envolvidos nas pesquisas com animais? O quanto há de recursos públicos (sabe-se que volumosos)? Quais são as relações das pessoas ligadas ao Instituto Royal com universidades, empresas privadas e órgãos governamentais? E para quais tipos de empresas o Instituto trabalha? É realmente verdade o que o texto afirma, que “O Instituto realiza estudos de avaliação de risco e segurança de novos medicamentos”, dando a entender que apenas isso? Ou que, como diz mais adiante, o Instituto realiza estudos para “diferentes tipos de setores produtivos (produtos farmacêuticos, produtos para a saúde, dispositivos médicos, agrotóxicos, produtos químicos e veterinários, aditivos para rações e alimentos, entre outros)”? Apenas esses, de fato? Não incluem empresas de cosméticos, por exemplo, como são acusados? O que serão “entre outros”? Como um “esclarecimento”, o texto da SBPC deveria dar respostas claras a todas essas indagações, pois elas são parte dos motivos da ação organizada em defesa dos animais presos. Pela natureza da entidade que diz representar, o texto deveria primar pela objetividade, transparência e imparcialidade. O fato de que não o tenha feito, e de que tenha preferido ser seletivo nos aspectos destacados, só pode levantar dúvidas e suspeitas sobre o que pode estar oculto ou dissimulado.

Por fim, é lamentável que o texto seja divulgado sem a assinatura da diretoria da SBPC (pode-se presumir que seja dela a autoria do “esclarecimento”?) [mas ver abaixo]. É um texto sem autoria assumida e, como tal, presta-se à especulação: será que foi discutido em reunião urgente da diretoria da SBPC, será que houve consulta às opiniões de conselheiros e regionais? E os sócios, todos pensam – ou a maioria pensa – tal como o que foi veiculado no texto, ao ponto da diretoria ou parte dela se sentir autorizada a defender instantaneamente o Instituto Royal? Será? A estratégia dos autores do “esclarecimento”, contudo, sejam lá quem forem, foi além da omissão dos responsáveis. Talvez o mais reprovável do “esclarecimento” seja a suprema soberba – e suprema tentativa de mistificação – de se autodenominar “a comunidade científica brasileira” – “A comunidade científica gostaria ainda de deixar claro”, diz o texto ao final, assim como o próprio título. Um “esclarecimento” aos autores do texto da SBPC: a ciência utilizada para dominar e dissimular nunca esteve ao lado das boas causas da história.

Obviamente não espero mudanças na posição da diretoria da SBPC, mas não tinha como evitar o protesto.

Att

PS: desde a publicação do “esclarecimento” da “comunidade científica brasileira” no dia 18/10, o texto não continha autoria ou qualquer nome associado a ele, como foi dito acima. Assim ficou por dias, até que hoje (25/10) constatei que curiosamente foi inserido o nome da presidente da SBPC (“Artigo de Helena Nader* para o Jornal da Ciência”, com crédito ao final), mantendo a data original da publicação. Nenhuma observação, porém, foi adicionada explicando que a autoria do texto foi incluída *posteriormente*, depois de protestos, o que não constitui o procedimento correto nestes casos. Mas não é tarde para corrigir o deslize, a menos que a intenção seja reescrever a história, um artifício antigo [adicionado em 9/11]. Poderia aproveitar também a presidente para corrigir a forma um pouco excessiva de se autodenominar “a comunidade científica brasileira”, como ficou no texto. Aguardemos as modificações.

 

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s