A maior novidade na cena pública das últimas décadas, os protestos que vêm se repetindo aqui em São Paulo – e que ontem (17/6) ganharam uma nova dimensão com a mobilização em várias cidades – trazem perplexidade, dúvida e esperança. O fato das reivindicações serem difusas e “vagas”, como dizem alguns, antes de ser uma deficiência, pode ser a força principal do movimento. Múltiplas agendas, insatisfações diversas, grupos variados vão às ruas após anos e anos de passividade ou ações isoladas e segmentadas. Pelo que converso com alunos e outras pessoas, duas motivações de fundo têm levado à reação surpreendente das ruas.
Primeiro, uma grande insatisfação com a soberba de grupos partidários e políticos de todos os espectros ideológicos que se dizem veículos e intérpretes dos interesses da sociedade e que, em seu nome, dedicam-se a apropriar recursos (públicos) e poder em benefício próprio. A corrupção em todos os níveis e sob diferentes formas, bem como o desperdício generalizado de recursos públicos, têm sido há décadas praticados por elites políticas e econômicas (de novo, de todo o espectro ideológico) como algo natural e que pode ser dissimulado por uma boa retórica progressista ou em nome do “povo”. A crença dessas elites e seus cúmplices, invertendo e modificando o ditado sobre Pompeia, a mulher de Julio César, é que não é preciso ser honesta, basta parecer honesta.
A segunda motivação relaciona-se à anterior. Há uma grande insatisfação com as políticas e serviços públicos que afetam a maioria da população, como educação, saneamento, habitação, saúde e transporte, apesar dos altos níveis de tributação do país, que recaem desproporcionalmente sobre assalariados e consumidores. Com exceção dos grupos altamente privilegiados, todos sofrem em menor ou maior medida com o desastre na qualidade do ensino público primário e da saúde pública, por exemplo. Há uma percepção crescente da relação direta entre apropriação privada de recursos públicos por elites políticas e econômicas, de um lado, e a oferta e qualidade inferiores de serviços públicos, de outro. Essa percepção, se de fato existir, não é pouca coisa. O acompanhamento e o controle dos recursos públicos por mecanismos transparentes e democráticos são um fundamento da democracia moderna, mas obtê-los é algo difícil e complexo. Grupos com acesso privilegiado ao poder político e econômico se empenham em menosprezar, desmoralizar, rejeitar ou burlar formas democráticas e transparentes de controle dos recursos públicos. Para esses grupos privilegiados, é essencial que lhes seja garantido o poder de canalizar subsídios maciços a grupos econômicos, de expandir gastos de custeio e pessoal continuamente, de preservar uma estrutura burocrática clientelista e não meritocrática (Weber jamais!), de alocar recursos públicos para projetos e obras (mesmo que sociais) que gerem altos retornos privados diretos ou indiretos, financeiros ou políticos.
É por motivos como esses que a reação das ruas traz (até agora) um elemento novo e superior ao que tínhamos visto na história recente, por mais aparentemente vagas e desencontradas que sejam as suas demandas.
Muita lucidez em seus comentários Prof. Renato. Em meio a toda essa discussão, percebemos que tais grupos políticos e alguns de seus membros dizem identificar-se com o movimento ignorando o que você menciona na primeira insatisfação. A expressão política do movimento talvez seja essa insatisfação, ainda que sem nenhuma identificação partidária. Curioso é observar que os grupos partidários e políticos tentam não reconhecê-lo como tal, atribuindo-lhe razões outras que não aquelas que se relacionam com as decisões de seus partidos. Ou seja, tendem a encarar uma naturalidade própria da época moderna como se não tivessem responsabilidade enquanto elites politicas e econômicas. Abs
Boa Paulinho: continuamos acompanhando os desdobramentos da onda. Vamos ver o que vai dar.
Um abraço
Renato
Velho amigo e professor Renato,
Parafraseando o conselho de Nelson Rodrigues: Envelheçam, envelheçam meus jovens!!! Como é bom ler um artigo com uma mensagem tão generosa, tão clara, tão esperançosa, tão compreensiva quanto teu artigo e o artigo de Carlos Lessa, publicado na Carta Capital, verdadeiro oásis nesse deserto de homens e idéias. Quanta diferença em relação ao ódio destilado em artigos e comentários presentes atualmente nas páginas da internet e até mesmo nos principais meios de comunicação, que não fazem mais que refletir a luta do poder pelo poder sem nada a oferecer a sociedade.
É preciso sem dúvida protestar contras as condições de vida em que vive a maioria da população brasileira, mas é preciso também oferecer soluções a sociedade. O que vivemos é o esgotamento de um modelo econômico e social que foi criado – sabemos – não pelo atual governo, mas ao longo de décadas de sucessivos governos – ditatoriais, em sua maioria, mas também, nos últimos 30 anos, governos eleitos dentro das regras do jogo democrático. De uma forma ou de outra – e aqui não importa o relativo sucesso ou fracasso que cada um desses diferentes governos obteve no campo econômico – todos eles foram incapazes de oferecer a maioria de nossa população uma infraestrutura, básica e comum, presente na maioria das cidades dos países do assim chamado mundo desenvolvido.
O resultado é que fomos incapazes no Brasil de completar o desenvolvimento pleno da cidadania, um caminho que a partir da luta pelos direitos individuais, deu passo ao alargamento dos direitos e das franquias políticas, a qual deu voz a amplos setores sociais que conseguiram inscrever muitas das garantias sociais e econômicas que conhecemos atualmente. Diferentemente daqueles países, onde a pressão da sociedade arrancava a partir da luta contra a ordem estabelecida, cada uma daquelas franquias, aqui foi a ordem estabelecida que determinou, regulou e marcou o ritmo, quase como uma concessão a sociedade, a ser arrancada sempre que essa mesma ordem estabelecida estivesse em perigo.
Ao mesmo tempo em que negavam esses direitos básicos à maioria da população ofereciam uma espécie de reserva de mercado ao setor privado a exploração desses mesmos bens. No lugar do convívio por assim dizer normal e equilibrado entre setor público e setor privado, foi estabelecida ao longo de muitos anos uma certa “especialização” na qual coube ao Estado oferecer a maioria da população serviços de péssima qualidade, e cabia ao setor privado oferecer esses mesmos serviços a uma pequena parcela da população, a que podemos chamar classe média, e explorar esse lucrativo negócio (esqueçamos por hora os muito ricos e poderosos que estavam a cabeça desse processo e dele se beneficiaram).
Como essa divisão do trabalho era de se esperar que a classe média fugisse dos serviços públicos e fosse procurar abrigo sobre a cara e aparentemente segura oferta do “eficiente” setor privado. Diante da péssima qualidade dos serviços oferecidos pelo Estado, com o tempo, parcelas importantes da população, a que podemos chamar de classe média remediada, migraram também para o setor privado, aumentando ainda mais seus polpudos lucros.
No fim desse processo, ficaram a cargo do Estado os serviços destinados à maioria da população (miseráveis, pobres e a classe média baixa e parte dos remediados) e ao setor privado os serviços públicos destinados aos ricos e poderosos, a classe média e a parte da classe média remediada. Sabemos também que essa construção foi produto de interesses ideológicos e de interesses empresariais em associação, só não se sabe exatamente em que proporções entraram cada um desses elementos. Os governos e seus defensores venderam a idéia de que o Estado era incompetente para oferecer esses serviços (e ironicamente a prova disso era o seu próprio desempenho!).
A sociedade como um todo, seja por omissão, interesse ou conveniência, aceitou as regras desse jogo. Agora vivemos em uma sociedade polarizada entre muitos que pouco ou nada têm e poucos que tudo tem e nada querem fazer para melhorar a vida de seus concidadãos. Durante muitos anos ambas pareciam viver em países diferentes. Mas mais cedo ou mais tarde ambas vão acabar descobrindo que vivem no mesmo país, e que é preciso reconstruir a sociedade pelas regras da cidadania ampla e da política democrática. Mas isso passa por uma mudança de atitude, cuja generosidade e o reconhecimento do outro, seria a condição para esse novo acordo. É isso o que vemos em teu e no artigo de Carlos Lessa, mas não é isso que infelizmente percebo como participante e expectador de nossa vida social.
O processo dessa obra inacabada culminou com a constituição de uma sociedade em algum sentido parecida com aquela sociedade futura encontrada pelo passageiro da máquina do tempo, descrita por HG Wells: uma sociedade onde viviam duas classes sociais: de um lado os Elóis, vivendo suas vidas banais na superfície da terra em um mundo aparentemente paradisíaco, sem qualquer tipo de preocupação, e de outro, os Morlock vivendo nos subterrâneos como escravos. Quem viu o recente documentário “Um lugar ao Sol” e quem vê as nossas cidades, sabe onde habita cada Elói e cada Morlock. Parece que os Elóis desperteram, falta despertar os Morlocks. Mas é preciso humanizar Elóis e Morlocks, para que possam se reconhecer como iguais, redescobrir seus laços humanos comuns, antes que seja tarde.
Desculpe-me o tom pessimista e o texto longo….
Abraços
Edu
Eduardo,
Muito boa análise. A esperança é que algo fique para o futuro, apesar da reação conservadora que já se iniciou.
Um abraço
Renato