Interpretações sobre a América Latina

Em um post anterior, comentei sobre o novo livro de Luis Bértola e José Antonio Ocampo, Desenvolvimento, Vicissitudes e Desigualdade: Uma História Econômica da América Latina desde a Independência.  Como uma obra notável que é, os autores apresentam novas interpretações sobre diferentes aspectos do desenvolvimento econômico na América Latina, suas conquistas e debilidades.

Uma das minhas maiores discordâncias da interpretação geral apresentada no livro refere-se à posição sobre os trabalhos de Engerman & Sokoloff (1997; 2002). Bértola e Ocampo minimizam as contribuições desses autores e, de fato, até simplificam exageradamente a sua interpretação, associando-os a um “determinismo estrito dos recursos sobre os aspectos tecnológicos e institucionais” (Bértola e Ocampo, 2010, p. 21). Aqui, aparentemente, determinismo é visto no sentido de fatos fixos do passado determinando de maneira irreversível os resultados do futuro, não havendo lugar para agência humana e mudanças nas instituições.

Essa opinião não faz justiça aos trabalhos seminais de Engerman & Sokoloff, em que recursos, poder político das elites, instituições e políticas públicas interagem de maneira bem mais complicada do que a suposição de um determinismo estrito dos fatores. Para Engerman & Sokoloff, o peso do controle dos recursos produtivos sobre estruturas políticas e institucionais não parece implicar irreversibilidade ou impossibilidade de mudança institucional. A questão central levantada por Engerman & Sokoloff é outra: como a elevada desigualdade na distribuição da riqueza, do capital humano e do poder político influencia a evolução das instituições (educacionais e de propriedade da terra, por exemplo) e, então, o desenvolvimento econômico de longo prazo.

Bértola e Ocampo são muito mais favoráveis à interpretação de Coatsworth sobre as causas do atraso econômico latino-americano (Coatsworth, 1988 e 2008). A opção de Bértola e Ocampo pela interpretação de Coatsworth me parece, contudo, pouco frutífera. Para Coatsworth as características coloniais ressaltadas por Engerman & Sokoloff são pouco relevantes para o desenvolvimento de longo prazo na América Latina. A América Latina teria fracassado em incorporar as inovações da Revolução Industrial devido à fragilidade de suas elites locais frente à metrópole. A região necessitava de governos fortes para promover a indústria moderna, “não menos desigualdade e exploração, mas talvez muito mais de ambos, incluindo subsídios às empresas e esforços para manter os salários baixos” (Coatsworth, 2008, p. 560). Então, com o crescimento da economia exportadora a partir de meados do século XIX, houve aumento da desigualdade econômica, fortalecimento das elites agrárias e manutenção de baixos salários devido à imigração e migração interna, mesmo com renovado crescimento econômico. Sob tais condições, a América Latina finalmente viveria seu take off, tardio mas substancial.

Dois grandes problemas da interpretação de Coatsworth são a sua frágil base empírica e sua perspectiva, vamos dizer, “estatista”. Que desigualdade não é incompatível com crescimento econômico é algo óbvio, como a história do Brasil demonstra recorrentemente. Coisa bastante diferente é assumir que a elevada desigualdade seja uma pré-condição para o desenvolvimento econômico.  Não há evidências no Brasil, por exemplo, de que a concentração da riqueza na economia açucareira do nordeste fosse significativamente menor do que na economia cafeeira, que liderou a expansão econômica a partir da segunda metade do século XIX. Da mesma forma, buscando fundamentar sua hipótese de fragilidade das elites locais, Coatsworth fala em “rebeliões e resistência endêmicas” mesmo nas fazendas escravistas do Brasil (e Caribe) pré-independência, o que não parece ser verdadeiro no caso brasileiro pelo menos.

O outro grande problema da abordagem de Coatsworth é que o autor desloca o foco das origens do atraso econômico para as instituições estatais (“capacidades estatais”) e as políticas orientadas para a industrialização (subsídios, contenção de salários), em uma perspectiva reminiscente da teoria cepalina e da teoria da dependência.

Com isso, algumas das linhas mais profícuas de investigação abertas pelos trabalhos de Engerman & Sokoloff são deixadas de lado: primeiro, entender como o controle dos recursos produtivos está relacionado com o poder de elites, instituições políticas e políticas públicas que afetam o conjunto da sociedade; segundo, de que maneira políticas públicas tradicionalmente negligenciadas pela literatura econômica (acesso à terra, educação primária, patentes) podem ter impactos significativos sobre a capacidade de crescimento econômico sustentado de uma sociedade; terceiro, em que medida e como características institucionais do passado podem ser persistentes e afetar o desenvolvimento econômico de longo prazo.

Essas questões não são simples e requerem uma substancial ampliação de horizontes em relação ao tratado tradicionalmente pela literatura sobre o desenvolvimento ou o atraso econômico na América Latina.

O livro de Bértola e Ocampo é uma importante contribuição à historiografia econômica da América Latina, mas ao priorizar as “capacidades estatais” e “políticas industrializantes”, minha impressão é que os autores se distanciam de questões e respostas cruciais para explicar o atraso econômico latino-americano.

2 comentários em “Interpretações sobre a América Latina

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